Justificando a ExistênciaQuando "a tua graça" já não basta
Conheci um diácono que atrapalhava os cultos. Ele circulava no salão, atarefado, carregando uma criança perdida, levando um recado importante ou um alerta de farol ligado no estacionamento. Fazia tudo com seriedade e zelo. Talvez, zelo em demasia.
Na mesma igreja havia um presbítero que não permitia que a reunião do Conselho terminasse sem alguma polêmica e desconforto. Todos ficavam de olho apertadinho, cada vez que ele respirava, esperando pela discordância ou pelo discurso inflamado. Era necessário “aprofundar o tema”, justificava ele. Sempre com indisfarçável alívio, se registravam suas raras ausências. Quando isso acontecia, sabiam todos que a reunião seria mais superficial. Mas seria também mais alegre, menos tensa e complicada e terminaria mais cedo.
Aquela senhora não parecia ter grandes problemas financeiros nem familiares. Era bem de vida e com os filhos já criados. Seu mal era o cansaço. Ela olhava com uma expressão que parecia querer dizer: “Ufa, vejam como estou 'e-xaus-ta', mas estou firme no Senhor, que me tem sustentado miraculosamente”. Não se sabe bem a razão de tanta fadiga, mas parecia que ela “necessitava” que todos validassem seu cansaço. Na igreja, estava sempre à busca de algum trabalho. Entretanto, quando o pastor lhe pedia alguma coisa, ela dava um indisfarçável gemido e saía murmurando baixinho, para executar a "penosa" missão. Não raras vezes, olhava para o céu, no gesto dramático de quem pede forças, uma última vez.
Talvez ela precisasse demonstrar suas lutas (e vitórias) a todos; como que a dizer que ela não estava ali de brincadeira, nem de férias; estava trabalhando, modificando a realidade, influindo, sendo útil, a duras penas — e isso provasse, aos seus próprios olhos, que sua existência não era "pequeno-burguesa" e medíocre.
Isso me lembra um colega de trabalho que costumava andar apressado pelos corredores, cenho franzido, olhando para baixo, falando sozinho, carregado de documentos. Até hoje desconfio de que ele deixava a papelada cair em momentos estratégicos, para a consternação de todos, que se apressavam em ajudar. Digo isso porque nunca vi sua papelada cair sem platéia. Ele parecia sempre atarefado com missões de alta importância. No entanto, todos sabíamos que suas funções eram as mesmas de todos os seus colegas. Por que razão ele vivia em tanta tensão? perguntávamo-nos. Mas tínhamos simpatia por ele. "Cada um com sua cruz", dizíamos com um sorriso divertido.
Aconteceu que ele teve um infarto. E mais uma vez, surpreendeu-nos a todos. No hospital, percebia-se excitação em seu semblante, ao falar das tarefas que estariam se acumulando com sua ausência e da sobrecarga terrível que teria para tirar o atraso, quando voltasse. Ele não conseguia mudar de assunto. O trabalho estava ali, presente, a lhe causar grande agitação e angústia. Mas todos sabiam que o chefe redistribuiria suas tarefas, até que ele voltasse. E que ele encontraria sua mesa limpa.
Estranho. Aquele infarto lhe fora uma glória. Como que a coroar toda uma vida de dedicação ao trabalho. Sim, o seu corpo atestava que ele estivera dando mais do que podia. Talvez ele cresse que, depois daquele hospital, jamais perderia a função. Ou que receberia uma medalha por "bravura em combate", ou que o presidente da empresa o convidaria para o jantar anual da diretoria.
Um pensamento me ocorre, agora: há momentos em que, para não admitirmos que nossa existência é menos relevante do que gostaríamos, dedicamos tempo e energia a assinalar, com tristeza, como conhecidos e irmãos “vivem mal”. Oramos por eles e nos sentimos bem. Na verdade, não tanto por havermos intercedido pelos irmãos, mas por termos fixado um desnível que nos favorece. E esse "algo mais não verbalizado" que achamos que somos ou temos, em relação aos irmãos, nos traz certo conforto; justifica nossa existência: "se esse irmão, sendo quem é e vivendo com as deficiências que todos conhecem, ainda assim merece um lugar ao sol — e eu acho que merece —, certamente eu também mereço estar onde estou, e gozar das alegrias e confortos que gozo. Não é à toa que estou onde estou; não é de graça. Sim eu mereço".
Entre cristãos, em especial, creio que esse fenômeno ocorre quando perdemos de vista os desafios concretos do reino e permitimos, por algum motivo, que nossa missão se reduza a contribuir financeiramente, ou com oração, em apoio às atividades daqueles que estão na linha de frente.
Há momentos em que "aburguesamos" nossa existência, cuidando apenas das nossas coisas, dos nossos problemas, do nosso bem-estar. É quando o porta-malas do carro fica pequeno para as compras, e isso nos deixa tristes. É quando a tarefa de guardar essas mesmas compras na geladeira nos drena toda a energia, e lamentamos a "vida dura" (e nem pensamos mais que tanta gente não tem o que comer). É quando passamos o dia angustiados com o que nossos visitantes vão pensar da maionese nova que preparamos, ou se o vinho vai estar na temperatura certa, uma vez que não temos a adega climatizada; ou se alguém, na igreja vai notar que existimos, e perceber nossa nova armação de óculos.
Nesses momentos, nossa vida de crente se distancia dos filhos, dos pobres, dos necessitados, do trabalho social, dos doentes, dos encarcerados; do reino de Deus, enfim. Então, passamos a elaborar, inconscientemente, justificativas secundárias para nossa existência. A tal ponto chegamos que até pequenos acidentes, como um corte de faca na cozinha ou o carro levemente amassado no trânsito vêm a calhar, pois nos permitem contar, no momento comunitário de ação de graças, como Deus está conosco e nos livrou de uma possível tragédia. "Sim, Deus é fiel", afirmamos com emoção.
Meu pensamento é de que não precisaremos dessas razões para existir quando crermos verdadeiramente que o amor incondicional de Deus traz segurança e significado à nossa vida: “Tu és meu filho amado, em ti me comprazo” (Lc 3:22); quando cremos que "a minha graça te basta". E que o seu serviço, se executado com humildade, diligência, gratidão e amor, há de validar toda a nossa existência, por mais singelo que seja: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou...” (Jo 4:34).
Nossas crises de insignificância aparecem quando desviamos os olhos das necessidades do reino e os fixamos em nossas próprias. Ou quando achamos que as nossas dores são as mais importantes do mundo, senão únicas. Quando deixamos que nossas vidas se transformem no centro do universo, tornamo-nos irrelevantes para o mundo, e nossa existência já não se justifica. Ah, se não fosse a misericórdia de Deus!
Lembro-me do filho pródigo que, ao receber o abraço do pai, suprime parte do discurso que havia planejado, quando estava entre os porcos: “trata-me como um dos teus trabalhadores”. Dizem que foi esperteza. Eu acho que não; creio que ele foi “vencido” pelo amor do pai. Ao se sentir seguro de seu amor, ele abre mão do propósito de “justificar sua filiação”, trabalhando para repor o que dissipara. Agora podia, simplesmente, ser filho. De uma forma que nunca havia experimentado.
Minha oração é que todos nós cheguemos a uma rendição dessa natureza. E aprendamos a viver como filhos amados. Sem mais nem menos. Simplesmente conscientes do Seu amor.
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